O Narcisismo na Versão do Ultraje a Rigor
“Filho do homem, dize ao príncipe de Tiro:
Assim diz o Senhor Deus: Visto que o teu coração se elevou e disseste: Eu sou
um deus, sobre a cadeira de Deus me assento no coração dos mares; não passas, contudo,
de homem e não és Deus, ainda que estimas o teu coração como se fora o coração
de Deus” - Ezequiel 28:2
Dias
atrás, ao meditar na passagem de Ezequiel 28:2, me veio à mente a música
"Eu Me Amo", da banda brasileira de rock and roll Ultraje a Rigor. A
ironia da letra, que exalta o amor próprio em um nível quase obsessivo, me fez
refletir sobre como a Bíblia já advertia sobre esse tipo de atitude ao longo da
história. O orgulho e a exaltação do eu são temas recorrentes nas Escrituras,
muitas vezes associados à queda e ao afastamento de Deus.
As
palavras dirigidas ao príncipe de Tiro em Ezequiel 28:2 revelam um coração
inflado de orgulho, alguém que se colocou no centro da própria existência, um
traço característico do narcisismo – termo derivado do mito grego de Narciso,
um jovem que se apaixonou por sua própria imagem refletida na água. A música
“Eu Me Amo”, composta por Roger, expressa de maneira irônica essa mesma
atitude, um indivíduo que se vê como sua própria fonte de felicidade e
significado.
O
narcisismo, que tem suas raízes na exaltação do ego, se manifesta em diversas
passagens bíblicas como uma característica de indivíduos que se colocam acima
de Deus e do próximo. A letra da música retrata alguém que, após buscar-se
incessantemente, finalmente se encontra e decide se amar acima de tudo como
Narciso o personagem da mitologia grega. A obsessão por si mesmo, entretanto, é
uma distorção do propósito divino para o ser humano. Em 2 Timóteo 3:1-2, Paulo
alerta que nos últimos dias os homens seriam “amantes de si mesmos”, uma
característica que levaria à decadência moral e ao afastamento de Deus. Esse
amor próprio exagerado, que se coloca acima de qualquer outra coisa, é uma
inversão do primeiro e grande mandamento que Jesus nos ensinou: “Amarás, pois,
ao Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o
teu entendimento” (Mateus 22:37).
A
Bíblia nos apresenta personagens que encarnam esse espírito narcisista.
Nabucodonosor, rei da Babilônia, é um exemplo clássico. Em Daniel 4:30, ele
declara: “Não é esta a grande Babilônia que eu edifiquei para a casa real, com
a força do meu poder e para glória da minha majestade?”. Sua autoadmiração e
egocentrismo o levaram a ser humilhado por Deus, tornando-se como um animal até
reconhecer a soberania divina. Da mesma forma, a música repete incessantemente
a afirmação “Eu me amo, eu me amo, não posso mais viver sem mim”, como se a autoidolatria
fosse suficiente para preencher o vazio da existência. Mas a Palavra de Deus
nos ensina que a verdadeira plenitude só é encontrada em Deus, não em nós
mesmos. Em Jeremias 17:9, lemos: “Enganoso é o coração, mais do que todas as
coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?”. A confiança absoluta
em si mesmo é uma armadilha, pois o coração humano, separado de Deus, é
inclinado ao erro e à autossuficiência destrutiva.
O
rei Herodes Agripa I, em Atos 12:21-23, também ilustra os perigos do
narcisismo. Quando ele se apresentou ao povo vestido com roupas resplandecentes
e a multidão gritou: “É voz de Deus, e não de homem!”, Herodes aceitou essa
adulação sem reconhecer a glória de Deus. Como consequência, um anjo do Senhor
o feriu, e ele morreu comido por vermes. Isso demonstra que a idolatria de si
mesmo é uma ofensa grave ao Criador, pois usurpa o lugar que pertence somente a
Ele. A música, embora em tom satírico, reflete esse mesmo sentimento quando
exalta a própria existência como a coisa mais importante: “Agora eu tenho uma
razão pra viver, agora eu posso até gostar de você”. O amor ao próximo só se
torna possível depois de uma completa aceitação de si mesmo, colocando o
indivíduo no centro de tudo.
A
Escritura, no entanto, ensina que o amor verdadeiro não é autocentrado, mas
sacrificial e altruísta. Jesus nos deixou o maior exemplo disso ao entregar-se
por nós na cruz. Em Filipenses 2:3-4, Paulo exorta: “Nada façais por contenda
ou por vanglória, mas por humildade; cada um considere os outros superiores a
si mesmo. Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual
também para o que é dos outros”. Esse é o verdadeiro padrão do amor cristão,
que se opõe diretamente ao amor narcisista pregado pela música. Em vez de se
voltar para dentro e se fixar na própria imagem, o discípulo de Cristo é
chamado a olhar para Deus e para o próximo.
A
repetição constante da palavra “eu” na música é emblemática do pensamento
narcisista, que se fecha em um ciclo interminável de autoadmiração. Entretanto,
o cristão é chamado a negar a si mesmo, como Jesus ensina em Mateus 16:24: “Se
alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”.
Esse chamado à renúncia do ego não significa um desprezo pela identidade
pessoal, mas sim um reconhecimento de que a verdadeira vida está em Cristo e
não em nossa própria imagem.
A
parábola do fariseu e do publicano, contada por Jesus em Lucas 18:9-14, ilustra
bem a diferença entre um coração narcisista e um coração humilde. O fariseu se
exalta diante de Deus, agradecendo por não ser como os outros homens, enquanto
o publicano clama: “Ó Deus, tem misericórdia de mim, pecador!”. O primeiro
representa aqueles que confiam em sua própria justiça e vivem centrados em si
mesmos, enquanto o segundo reflete aquele que reconhece sua necessidade da
graça divina. Deus justifica o humilde e rejeita o soberbo (Tiago 4:6).
A
música “Eu Me Amo” é um reflexo cultural de uma tendência humana que a Bíblia
já advertia há milênios: a exaltação do ego como fonte de significado. Embora a
autoestima seja importante em uma perspectiva saudável, quando ela se torna um
fim em si mesma, leva à idolatria do eu e ao afastamento de Deus. A verdadeira
realização não está em nos amarmos de maneira autocentrada, mas em encontrar
nossa identidade em Cristo. Como Paulo declarou em Gálatas 2:20: “Já estou
crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim”. Esse é o
caminho para uma vida plena e verdadeiramente significativa.
Deus
te abençoe,
Franklin
Rosa
Bibliografia:
●Bíblia de Estudo Thompson: Cadeia temática de
referências cruzadas – Frank Charles Thompson
●Comentário Bíblico Wiersbe: Vol. 1 Antigo
Testamento / Vol. 2 Novo Testamento – Warren W. Wiersbe
●O
mito de Narciso sob a ótica da Psicanálise